segunda-feira, 10 de novembro de 2014

O pisca alerta e o óculos lilás

~do cotidiano~

Sobre o momento em que você está, tranquilamente, ouvindo no final de domingo as músicas da Vanessa da Massa, compartilhando, tocando seu coração. Quando chega na música "Fugiu com a novela" - que muitas vezes você já cantarolou sem se dar conta da letra. Eis, que vem o pisca alerta e você pega seu óculos lilás, volta um pouco a canção pra ouvir:

"Eu vivia no jogo
Ela me esperava
Quando eu pedia fogo ela não negava
Se eu tivesse com outra ela achava bom
Desde essa desilusão eu me desiludi
O meu coração
Palpita aparte poupando-me de um pouco de sonhos
Depois desse desengano
Cozinhava, passava, me alisava
Eu contava piada ela gargalhava
Metia a mão nela e ela perdoava
Eu perdi o meu amor para uma novela das oito
Quando fomos morar juntos ela me adorava"
(ouça aqui, mas com moderação!)

O pisca alerta continua disparando e você para a música, se certifica que a letra é realmente essa, que tem por trás um sambinha bom de curtir, até antes.

Esse alerta me lembrou a postagem que vi no Portal Geledés, um texto com uma listagem de músicas que são extremamente machistas e que cantamos sem perceber.

Reproduzimos o machismo (por si violento e violentador!) em nosso dia a dia sem nos darmos conta de que com isso estamos naturalizando a violência contra a mulher. As músicas são apenas um dos inúmeros aspectos do nosso cotidiano que reproduzem o machismo em nossa sociedade. Colocamos o nosso óculos da naturalidade, da lente incolor, acreditando que é normal, que faz parte, que não haverá mudança, que tudo é como é. "Que bobagem, isso é apenas uma música". Outros dirão: "que bobagem, ele só deu um empurrão na namorada!". Então, isso não é natural! A violência contra a mulher acontece desde que a mulher é mulher e isso é o certo, certo? Errado!

O Brasil é o 7º no ranking mundial de países que mais assassinam suas mulheres. E isso não é normal. "Em 2013, o Ligue 180 recebeu mais de 530 mil registros, totalizando quase 3,6 milhões de ligações desde a criação do serviço, em 2005. De acordo com a Secretaria de Políticas para as Mulheres, a violência física representa 54% dos casos e a psicológica, 30%. "Isso não é natural.

"Nos primeiros seis meses do ano, o Ligue 180 realizou 265.351 atendimentos, sendo que as denúncias de violência corresponderam a 11% dos registros – ou seja, foram reportados 30.625 casos. Em 94% deles, o autor da agressão foi o parceiro, ex ou um familiar da vítima. Os dados mostram ainda que violência doméstica também atinge os filhos com frequência: em 64,50% os filhos presenciaram a violência e, em outros 17,73%, além de presenciar, também sofreram agressões." Isso não é bobagem.

Dia 25 de novembro é declarado como o Dia Internacional de NÃO Violência Contra as Mulheres. E ao contrário do que diz a letra "metia a mão nela e ela perdoava". Nós dizemos que não. Não perdoamos! Não nos calamos!

sexta-feira, 25 de julho de 2014

Sobre perdas, lembranças e saudades

Na vida somos sempre preparados para ganhar, nunca perder. E se o que perdemos têm vida, aí então nos frustramos e se essa perda é a perda do ser com vida...

 Já se diz há muito, que a única certeza que temos nessa vida, é que um dia todos morrerão. Porém, essa sentença certeira, não conforta, afinal de contas, como a morte é o grande mistério nunca sabemos quando, como e a razão.

A saudade aparece então como o único antídoto para o consolo. As lembranças do tempo vivido e compartilhado acalentam a alma.

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Lembro até hoje da morte do meu tio Pedro, em 1988, eu tinha 4 anos, foi a primeira vez que perdi alguém tão próximo e tão querido. Nunca esqueço do desespero dos meus avós, das minhas tias, da minha mãe, eu sofri também, entendia aquela movimentação, mas não tinha ainda discernimento pra compreender qual o tamanho que a falta dele nos faria no decorrer dos anos.

Depois do tio, acho que uns 3 anos depois, faleceu Iaiá, minha bisa, Otaviana Lira Tavares, nome forte assim como ela, uma mulher alta e robusta. As lembranças com Iaiá estão entre as melhores da infância. Iaiá era cega, perdeu a visão na juventude. Chegava a sua casa na pontinha dos pés, com todo cuidado pra não fazer barulho. E ela logo dizia: “- Quem taí?! – Advinha quem é?! – Ah eu já sei, é a Valéria da Solimar”. Eu ficava frustrada e não entendia sua aguçada audição. Aí depois de ‘descoberta’ caíamos na gargalhada. Iaiá, usava saias longas e tinha sempre um cachimbo como companheiro,  se divertia quando ia pra minha casa e pedia pra colocar a música do Sérgio Reis, balançava as mãos, cantarolava, até hoje é impossível ouvir e não lembrar: “E nessa casa tem goteira, pinga ni mim, pinga ne mim, pinga ne mim”.

Tão criança e já havia perdido tanto. Tantas referências de vida importantes. Em 1999 foi um ano difícil. Perdemos meu avô Joaquim em fevereiro e minha tia Alice no fim do ano. Mais uma vez, conhecemos de perto a dor, a tristeza e a saudade nos sufocaram. Quando íamos passar o fim de semana na casa dos meus avós, minha mãe dizia: “- Quando chegar dê um cheiro pro seu avó. – Aaaah mãe, mas o vô cheira a “porronca” (fumo). – Pois cheire assim mesmo”. Certa estava minha mãe, era o melhor cheirinho de porronca que alguém poderia dar. Aquele cheiro significou e significa até hoje, quando sinto me faz voltar no tempo e não esquecer.

Tia Alice era a baixinha mais zangada que eu conheci. Meu nome Flávia, foi sugestão dela. Mamãe queria que meu nome fosse Alba Valéria, mas minha tia interviu e sugeriu, quase que uma imposição, que fosse Flávia. Era a única da família que me chamava pelo primeiro nome.  – Tia me empresta seu pente pra ir lavar o cabelo no riacho. “– Toma Flávia, mas não perca, se perder vou te fazer mudar o curso do brejo até encontrar”. E lá íamos nós, eu e minhas primas com esse bendito pente emprestado rezando pra não perder. Perdemos, mas depois de quase mudar o curso do riacho encontramos, pra nossa alegria. Era carinhosa também, engraçada. No final de 1998 estávamos todos reunidos na chácara, a família inteira reunida. Minha última lembrança.

Depois dessas veio o mais duro golpe, quando minha avó faleceu em 2003. Foi a mais sofrida das perdas, a mais desesperada, a mais sentida. Difícil explicar o que minha vó representou/representa pra mim enquanto convivemos juntas, era de fato minha mãe duas vezes.  A nossa despedida foi uma das coisas mais lindas que vivi até hoje, eu estava há um ano na faculdade e ela tinha muito orgulho de ter uma neta na universidade, a primeira da família (até então). “– Eu te amo tanto minha rosa paruara (já pesquisei, mas nunca encontrei o significado, mas deve ser algo bom, porque ela sempre nos chamava assim), mas a vó sabe que essa é a última vez que vamos nos ver. – Deixa de besteira vó, não é nada, a senhora ainda vai à minha formatura. – Não vou não minha filha”. E entre lágrimas nos abraçamos, juramos amor pra sempre e um mês depois, no dia 11 de setembro de 2003 ela faleceu. Minha formatura foi pra ela, quatro anos depois.

Quando parecia, que a vida tinha dado uma trégua nas perdas, lá se veio mais uma. Tia Lenir faleceu em outubro de 2004. Esposa do meu tio Julimar e dona das mãos mais perfeitas pra cozinhar que conheci até hoje. Tia Lenir, junto com tia Lu e tia Cátia, eram/são nossas mãos de fadas. Era uma mulher batalhadora, lutadora mesmo, eu admirava. Tia Lenir formava um trio com minha mãe e a tia Francisca, inseparáveis. As cunhadas irmãs. Sempre achei isso muito bonito. Nosso último encontro foi bem no meu aniversário em agosto de 2004, em Goiânia. “– Eu não tenho dinheiro pra comprar presente, mas vou cozinhar o que você quiser”, disse ela. E assim foi. Ainda bem que nos despedimos com festa e seu sorriso é minha última lembrança.

Em outubro de 2012, fomos obrigados a nos despedir do tio Julimar, tio Julica. Dia de dor e tristeza. Meu tio era reservado, quieto, homem trabalhador e muito querido. Quando morei um tempo com eles em Goiânia e meu tio trabalhava de vigia numa padaria, eu e meus primos ficávamos contando as horas pra ele chegar e trazer coisinhas deliciosas pra gente. Tempo bom.

No último dia 20 de julho, foi outra dor sentida. Outra perda e muitos corações dilacerados pela tristeza. Perdemos o irmão do meu pai, Natanael Ribeiro, tio Natal. Embora a convivência não tenha sido a do cotidiano, a dor e o sofrimento de perder um parente querido, ainda mais de forma tão trágica, é desolador. Tio Natal partiu deixando um exemplo de homem honesto e trabalhador. E mais uma vez nós ficamos amparados na saudade.

São tantos os que perdemos, tanto que sofremos. E por mais que a vida ensine, nunca estamos preparados. Pra morte não há quem esteja calejado, acostumado, conformado. Para perder pra morte, estamos sempre despreparados e amedrontados.

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Certa vez assisti um documentário sobre a Guiana Francesa e lá mostrava um funeral diferente, as pessoas sorriam, cantavam, dançavam. Era uma festa. O “divertimento” era uma forma de celebrar e comemorar a oportunidade de viver, a oportunidade de compartilhar, de aprender, de ser feliz, com quem partiu. E embora, as nossas despedidas nunca sejam momentos de celebração da vida, afinal de contas, choramos a partida, sinto, que devemos sim celebrar e agradecer por cada ano vivido de quem esteve conosco, exemplos de grandes mulheres e grandes homens, um consolo pra dor da saudade.

“E a vida, e a vida o que é, diga lá meu irmão, ela é a batida de um coração ou ela é uma doce ilusão...